Análise do filme Bacurau
Aprendizados sobre colaboração e estereótipos.
São diversas as temáticas e oportunidades de aprendizado a partir do filme Bacurau. Aqui, refletimos sobre o recorte da sua organização como comunidade e aprofundamos o olhar para além das aparências de pessoas do interior.
Para pensar política e cidadania, exercidas de forma local e organizada para além do Estado, como um exemplo de poder da união de um povo.
A quebra do estereótipo
O que vem a sua cabeça quando pensa em uma cidade do interior?
Estrada de terra? Campos verdes com bois pastando? Pessoas humildes sem ou com pouca instrução?
Desmistificando o imaginário comum de cidades do interior e desconstruindo estereótipos do caipira, Bacurau veio nos confundir.
A cidade fictícia — criada para o filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, lançado em 2019 — fica no sertão brasileiro, com uma população muito distinta.
Um povoado simples, sem água encanada que precisa ser abastecida via caminhão pipa, mas que tem internet, tablet, computador e smartphone. Tem escola, biblioteca, museu, música. Tem valorização da cultura e das tradições locais.
Diferentes convivem em respeito e harmonia: velhos, jovens, pessoas de de gêneros, cores e orientação sexual diversos, cores e orientações sexuais. Religiosos e prostitutas, professores e cangaceiros.
Como uma amostra do Brasil diverso e multicultural, porém num ambiente pacato, organizado e distante de grandes centros. Onde a simplicidade, olhar no olho e saber o nome do vizinho são coisas normais.
Distantes de estereótipos de pessoas simplórias ou ignorantes do interior, o povo de Bacurau é inteligente, forte, sabe desfrutar do tempo, da terra e da sabedoria popular. Aliados também a tecnologia e a educação, buscando e defendendo seus direitos básicos como segurança, saúde e liberdade.
“ — Quem nasce em Bacurau é o quê? — É gente”.
Uma comunidade unida e colaborativa
Como qualquer cidade pequena do interior as pessoas se conhecem e existem antipatias, mas apesar das diferenças há uma rede de confiança, comunhão e colaboração inquebrável entre todos.
Em situações de necessidade, de forma organizada e estratégica, todos se ajudam, fazendo cada um a sua parte, para o plano maior funcionar, beneficiando a população.
Quando uma ameaça exterior chega — em forma de assassinatos covardes cometidos por pessoas que se sentem superiores devido a sua origem, classe e cor — o povo de Bacurau age.
Dentro das suas possibilidades, de forma astuta, ágil e metódica, se organizam para defender a vida da comunidade. Surpreendendo quem achava que esse pequeno povoado do interior, poderia sumir do mapa e ser exterminado sem que ninguém percebesse ou reagisse.
Combatendo a ideia — e as pessoas — que os viam como fracos, inferiores e subestimaram seu poder de percepção e reação. Cenário semelhante ao da nossa sociedade que vê pessoas mais simples e marginalizadas — quase sempre do interior ou periferias — como menos merecedoras de respeito, incapazes de exigirem por seus direitos.
Fazendo do limão uma limonada
Sob sérias ameaças, a primeira ação de defesa do povo foi resgatar um importante líder da comunidade, que estava foragido.
Lunga, um personagem de gênero fluido, lembra os antigos cangaceiros que vão até as últimas consequências na busca por justiça. O respeito que ele tem do povo da cidade vem dos seus feitos ao defendê-los custe o que custar.
Nos mostrando o que acontece quando as estruturas de segurança e desenvolvimento social não alcançam parte da sociedade, as obrigando a criarem suas próprias estruturas para sobreviver.
Pessoas com potencial não desenvolvido — por falta de oportunidade e atendimento de suas necessidades básicas — como Lunga, são empurradas para caminhos da revolta, do crime, da literal luta pela vida.
Ao chegar em Bacurau após ter saído do seu esconderijo, o professor da cidade relembra: Lunga, você escrevia tão bem que não devia ter parado. Mas, ele parou. Ele também trocou a caneta pela arma e usa sua criatividade para bolar planos de defesa contra assassinos que estão invadindo a cidade.
Poderia ser diferente!
Após se organizarem, a população recorre a sua história e origem para garantir sua defesa. No museu estão as armas de tantas outras batalhas que esse povo já precisou enfrentar para continuar existindo.
Mas não só, lá também está a fonte de força e coragem para enfrentar o inimigo, sabendo que já fizeram isso antes. Relembrando sua história, suas conquistas, sua cultura e tradição, encontram razões que afirmam sua existência e estimulam sua resistência.
Evidenciando a relevância de conhecermos nossa história, respeitando nossa trajetória enquanto povo, compreendendo o nosso valor perante o restante do mundo. Num processo de autoestima social, autonomia e pertencimento, fundamentais para o exercício cidadão.
Por fim, juntos agiram coordenados pela defesa da cidade. Comprovando que independente de seu nível de educação formal ou classe social, tinham condições de se defender, pois sabiam do seu valor e que juntos eram mais fortes.
Sendo bastante simbólico que a escola tenha sido um local de importante refúgio — uma verdadeira trincheira — de onde saiu um importante ataque aos inimigos.
Ao final vemos como a organização de uma sociedade é poderosa e capaz de proteger sua existência, a partir dos seus próprios interesses, valores e crenças.
Que a violência não seja o único recurso
Longe de exaltar a violência ou defender que civis fazem justiça com as próprias mãos. Bacurau vem para nos mostrar o quanto o abandono do Estado pode obrigar as pessoas a lutarem por sua sobrevivência.
Criando suas próprias leis, escolhendo suas lideranças e defendendo quem os defendem.
Vimos também o quanto a violência foi utilizada apenas como defesa, um último recurso numa luta para continuar existindo. Atentem não adiantava ligar para a polícia ou qualquer outro órgão de segurança, eles estavam isolados. Era eles por eles.
Ao olhar para esse contexto, pensamos em como comunidades marginalizadas precisam igualmente se organizar para sobreviver. Criando suas próprias estruturas e condutas de segurança, vivendo em alerta e precisando proteger suas existências.
“Se for, vá na paz”.
Por um Bacurau diferente
Enquanto é bonito ver a boa convivência entre os diferentes e todo o respeito e valorização da cultura do povo de Bacurau, é também preciso refletir como a história desse povo poderia ser diferente.
Num contexto em que a gestão pública de fato executasse sua função, garantido o básico como água potável, saúde, segurança, educação. Em que o povo tivesse alternativas que não fosse lutar com as próprias mãos.
Em que os jovens pudessem estudar e desenvolver suas habilidades, ao invés de ter de lutar em defesa dos seus. Tendo a perspectiva de uma profissão, emprego e renda, para viver com dignidade.
Há muita coisa boa em Bacurau que precisa ser valorizada, mas há tantas outras que precisam mudar.
Bacurau é uma amostra do Brasil e o que vimos ali é verossímil, é profundo e atual. Ao olhar para essa amostragem pensamos que todas as faltas que lhe afligem, também afligem a nossa sociedade. E assim como Bacurau poderia ser diferente, o Brasil também, poderia.
A arte também tem disso: conseguimos nos ver com distanciamento, compreendendo o que nos falta e o que nos sobra. Nossas forças e fraquezas.
Que esse olhar nos indique o caminho da mudança.
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